sábado, 10 de janeiro de 2015

INDISSOCIÁVEL
(por Alexandre Braoios)

            Vemos diariamente em nossos noticiosos histórias dos incontáveis massacres que ocorrem endemicamente no nosso país. Nossa reação? Quando muito restringe-se a um nem tão consternado assim: “Meu Deus!”. Em seguida o Bonner dá seu charmoso Boa Noite e voltamos nossa intelectualidade para as tramas rocambolescas da novela das 21 hs.
            Apenas um esboço de cidadania e arrojo semipolítico se mostrou na campanha presidencial. E o esboço não foi de nenhum Niemeyer, mas de alguém que, como eu, só consegue desenhar a mesma árvore desde os tempos de escola. Mas é um começo, temos que ser otimistas. Afinal, ninguém aprende a se politizar de um dia para o outro.
            Dilma e o PT ganharam mais uma eleição, a mais sofrível que presenciei. Sofrível em todos os sentidos, principalmente o que se mostrou durante a campanha por parte de todos os candidatos que se atacavam mutuamente – sim, a baixaria não foi monopólio de uma legenda. Mas os ataques que vimos foi incomparavelmente menor do que os que ocorriam nas redes sociais entre militantes de cada candidato e a polarização do segundo turno apenas acirrou a pendenga. Encerra-se o pleito e inicia-se a campanha do “terceiro turno”, onde o nível de despautérios e informações nebulosas continuam os mesmos. O candidato derrotado veste-se com os adereços do bom moço salvador da pátria e continua sua campanha. A candidata vencedora se embanana como fez nos debates e monta um ministério que mais parece a casa dos horrores, além de tomar medidas no mínimo duvidosas, se considerarmos o suposto esquerdismo de seu partido político. Mas não é sobre isso que pretendo escrever, é apenas um preâmbulo.
            Quando, em 07 de janeiro, a notícia sobre o massacre parisiense começou a circular, aí sim nos vestimos de indignação contra esse absurdo e desumano atentado. Alguns dos maiores cartunistas franceses haviam sido assassinados por terroristas muçulmanos, além de outros anônimos. Realmente terrível. A capital do charme e do glamour havia sido alvejada sem piedade por desalmados cidadãos franceses de origem islâmica, que desde sempre foram marginalizados e escondidos nos subúrbios mais sujos da cidade luz, provavelmente para não “enfeiar” a cidade. Nos dias que se seguiram novos desdobramentos com mais mortes e uma caçada sem precedentes aos criminosos mobilizou toda a França, o FBI americano e o mundo parou para ver o desenrolar da história, onde os (ainda) suspeitos acabaram mortos.
            Meu nível de conhecimento sobre a história francesa não é suficiente para uma longa explanação sobre o assunto, bem como não conhecia a fundo a publicação que foi alvo do atentado. Ao pesquisar o assunto percebi que os chargistas realmente eram mestres. Charges do papa, charges de judeus, de políticos e economistas e, claro, de Maomé que, de acordo com a fé islâmica não pode ser retratado em desenhos ou pinturas, quem dirá satirizado.
Igualdade, Liberdade e Fraternidade é o tão proclamado princípio herdado da revolução francesa e todos eles foram assassinados nesse atentado, ou melhor, tem sido assassinados nos diários capítulos que culminaram nesse massacre. O lema inspirador do cineasta polonês Krzysztof Kieślowski que dirigiu os imperdíveis filmes: A Igualdade é Branca, A Liberdade é Azul e A Fraternidade é Vermelha, mingua a cada dia no mundo dito globalizado em que vivemos, e o monstro que o vem devorando mostra seus enormes dentes afiados, dessa vez na pátria mãe dos preceitos revolucionários.
            Onze de setembro em Nova Iorque, 12 de outubro em Bali, 07 de julho em Londres, 11 de março em Madrid, 07 de janeiro em Paris. Cinco datas que serão permanentemente lembradas para que não nos esqueçamos do que o fundamentalismo islâmico é capaz. Mas deveríamos mudar o foco das atenções e deixarmos essas datas para repensarmos o mundo que estamos construindo. Ainda há tempo.
            A França é o país europeu com maior população muçulmana, grande parte são descendentes de imigrantes de um país que foi colonizado e saqueado pelos franceses, a Argélia. A esmagadora maioria é discriminada, tem subempregos, moram em condições deploráveis e a todo momento são lembrados de sua possível doença, o fundamentalismo islâmico. Os muçulmanos seriam fundamentalistas e extremistas por definição. O adjetivo está se tornando indissociável e não demorará para assim constar no Wikipédia.
            Mas existem outras datas que podemos usar para reflexão, por exemplo, 22 de julho de 2011 na Noruega, 76 mortos. Responda rápido: quem foi o autor? Se você disse algumas dessas respostas: um fundamentalista islâmico; um louco qualquer; um cara desmiolado ou alguma coisa semelhante, sinto dizer, você está se contaminando. O autor desse crime horroroso foi Anders Behring Breivik, um norueguês fundamentalista cristão (!) de extrema direita.
            Mais uma vez o mundo se consternou, e eu também. Mas a consternação geral, se é que pode ser medida por algum consternociômetro, não foi a mesma quando milhares de civis foram mortos nas ofensivas israelenses em Gaza, ou nos outros tantos milhares mortos na invasão americana ao Iraque sob pretexto de encontrar e destruir armas de destruição em massa. Destruição em massa foi o resultado da ofensiva ocidental. Para quem não se lembra, nenhum traque foi encontrado em meses de ação assassina, e ficou por isso mesmo. Mas são um bando de árabes, quem se importa!? O mundo seria melhor se não existissem esses fundamentalistas! E seria ainda melhor se pudéssemos exterminá-los sob qualquer pretexto, tomar posse dessas terras que foram o berço da civilização humana e como prêmio ainda poderíamos explorar as imensas reservas de petróleo que elas guardam. Qual o interesse por traz dessas ofensivas? O bom-mocismo cristão?
            Por que tanto empenho não foi usado para por fim na genocídio que devastou Ruanda, onde mais de 500.000 foram mortos a golpes de facão e enxadas? E segundo alguns estudiosos, o massacre foi financiado pelo Banco Mundial e FMI. Ruanda é um país paupérrimo e não teria dinheiro para orquestrar tamanha matança. Por que a guerra na Bósnia, nos anos 1990, não foi prontamente interrompida pelas forças ocidentais? Estima-se em mais de 200.000 mortos, além de centenas de mulheres estupradas e outras atrocidades. O que falta ao subsolo desses países que não foi capaz de sensibilizar as grandes forças militares mundiais?
            Chegando mais perto de nós: por que não nos consternamos com os massacres contra indígenas que tem suas terras roubadas por madeireiras, garimpos, usinas hidrelétricas? Por que não nos indignamos com a mesma veemência com os massacres em favelas que são diários? Por que não publicamos nas redes sociais frases como Je Suis Gay quando vemos notícias das dezenas de mortes de gays e travestis, apenas pelo infame motivo de serem quem são?
            Qual é o verdadeiro problema que teima em se revelar na forma desses massacres estúpidos, como o de Paris? Talvez sociólogos estejam mais capacitados para responder, mas que seja um sociólogo a serviço da sociologia e não de algum partido, ou religião, ou outro grupo qualquer. Na ausência de um sociólogo de corpo presente, resta-me ler sobre o assunto, buscar informações, mas do mesmo modo, é importante que elas estejam isentas. Isso é importante porque o que estamos ouvindo no pós-ataque é uma repetição do que ouvimos nos outros. A notícia começa sempre com “Extremistas (ou fundamentalistas) islâmicos...”. Eis o adjetivo indissociável.
            Em meio a toda a crise econômica e política que assola o mundo, os grupos de extrema direita tem ganhado força e já estão sendo eleitos em muitos países, provavelmente Marine Le Pen da Frente Nacional seja eleita nas próximas eleições francesas. E eles já tem usado esse atentado para disseminar suas ideias nacionalistas extremistas.
            É paradoxal o mundo lutar pela tão proclamada globalização, mas não querer pagar o preço que ela impõe. Queremos comprar produtos mais baratos produzidos em regime de semiescravidão em países pobres, mas não queremos ver seus olhos puxados famintos, ou a pele não tão branca marcada pela chibata moderna.
            Mas, você pode imaginar que todo esse alvoroço está bem longe do seu iPhone e de sua roupa de grife. Não, esse problema também visita os trópicos. Ou você já se esqueceu do estado de quase-guerra que se instaurou porque um bispo resolveu chutar e quebrar uma imagem da padroeira do Brasil em 1995? O tal bispo que foi desrespeitoso com a religião de milhares de brasileiros foi ameaçado de morte. Liberdade de expressão seletiva? Particularmente eu acho exagerado e de mau gosto uma demonstração desse porte, assim como de uma charge mostrando Maomé apenas de turbante e “de quatro”. Acho desnecessário e desrespeitoso, e olhe que eu sou agnóstico! Mas é preciso ir a fundo nesse problema e não trata-lo apenas como um caso de extremismoislâmico (já deve ser possível ver a junção das palavras nos novos dicionários).
            E porque citei as eleições brasileiras de 2014? Para comprovar que a onda extremista está nos abraçando, é só lembrar das manifestações pedindo a volta da ditadura e a separação do território brasileiro para acomodar, no lado norte, os prováveis miseráveis que votaram em Dilma e no lado centro-sul, os prováveis mais ricos e instruídos que votaram no Aécio. Pense nisso. Dissocie-se.
           
           

           
           
           
           


terça-feira, 30 de setembro de 2014

A MENINA QUE QUERIA SER BACHAREL

Josiane queria ser bacharel em Direito. A moça tinha uma moto, tinha medo do escuro, mas andava no breu.
            Josiane carregava uma joia, não estava sozinha. O que ia na cabeça de Josiane quando pegou a contra mão? Avaliação de riscos. Segundos para decidir entre a contravenção de trânsito e o medo do viaduto distante, escuro e de mau agouro. Josiane era paranoica? Tinha delírios persecutórios?
            A multa ou sua integridade? Os pontos na carteira ou a preservação de sua linhagem? Pesadamente, carretas apressadas tentam escoar a produção e, certamente, devem ter interferido em sua avaliação. Josiane não é apenas um nome. Josiane é uma comunidade inteira que tenta aparecer por sobre o número frio da estatística. Josiane é o nome de três mil estudantes universitários e outras centenas de servidores que arriscam a vida para mudar a história. Suas histórias pessoais, de seus familiares, de suas cidades e do nosso país.
            Josiane poderia ter feito o contorno. Logo ali, a 2 km. Josiane poderia ter parado sua moto e cortado o mato alto para poder ser vista. Josiane poderia ter parado, quando a inscrição no asfalto solicitou, e calmamente ter entrado no vão escuro do viaduto. Poderia... Quem sabe até ter enfeitado e iluminado esse vão sem atrativo algum.
            Josiane não fez nada disso. Mas essa unidade estatística fez mais. Josiane mobilizou sua comunidade. Josiane forneceu os pneus para serem transformados em fumaça preta. Josiane emprestou as canetas e cartolinas para que virassem protesto. Josiane foi o convite-convocação entregue a cada autoridade. Josiane segurou o microfone, regulou o som e promoveu o debate.
            Josiane ficou triste de ouvir o Sr. Fulano de Tal dizer que aquilo era um show. Josiane chorou ao ver que o empurra-empurra de responsabilidades queriam carregar sua história para a gaveta eterna. Josiane sentiu falta de alguns representantes e autoridades que deveriam estar honrando seu nome. Josiane pode se tornar um número que irá compor algum gráfico no futuro e nesse gráfico nem conseguiremos distingui-la. Pode, mas não irá. Na impossibilidade física, Josiane conseguiu responder à chamada de sua professora. Alto e claro ela gritou: Presente!
            E todos nós pedimos que ela permaneça presente e que abra as gavetas empoeiradas, arranque os acordos firmados e grite, grite muito alto Josiane. E que nós tenhamos ouvidos de ouvir!
            Josiane queria ser bacharel... não deu! Virou manifesto.
           
           



sábado, 4 de janeiro de 2014

Sobre nada ou sobre tudo?
(por Alexandre Braoios)

         Hoje vou escrever. Não posso mais guardar essas palavras feitas de ranço e perfume que se amotinam, vou expulsá-las. Se não pela boca, que sejam pelas mãos. Oxalá encontrem o caminho limpo e sinalizado para não se perderem no limbo. Agora vai, custe o que custar.
            O quê depositar no papel se as palavras se amontoam numa orgia caótica e se desalinham insistentemente? O sempre protagonista amor? A política diária, arredia e desinteressante? A guerra pornográfica em cada rua tupiniquim? O derretimento do ártico? Ou a nova travessura do meu filhote canino que só a mim interessa? As ideias me brindam, mas elas preferem beber só. E na tentativa insistente de fazê-las ganhar o papel, levantam-se derrubando as cadeiras, como donzelas ofendidas diante de um galanteio mais ousado.
            Independente da natureza do que se pretende escrever, a primeira palavra nasce a fórceps. Um enorme bebê que se recusa a sair do aconchego uterino. Abrir o ventre e tirá-la imatura é blasfêmia contra o Divino. Mesmo às custas de horas dolorosas, devem ser paridas artesanalmente, ao seu tempo.
            Ao despontar, dilata e lacera o caminho estreito. Vez ou outra permanece ali parada a meio caminho entre o dito e o não escrito. Mostra somente a sílaba em embrião à espera da gota última que se tornará um dilúvio apocalíptico. Mas como dói o nascimento da primogênita. E que ingrata tarefa a de guiar suas irmãs pelo labirinto virgem das inéditas ideias ou mesmo daquelas já mastigadas, cuspidas e secas ao tempo.
            Não importa onde, como e nem com quem foram concebidas. Elas simplesmente nascem, como uma ameba assexuada que devagarinho lançam seus pseudópodes em busca da ideia nutritiva. Arrasta-se disforme e desengonçada pelo limo pegajoso que encobre a clareza e a exatidão. Tão logo chega ao mundo, agita-se sorridente à espera do que lhe dê forma e função: a ideia, o assunto, o mote. Algumas já nascem predestinadas, outras desvirtuam o que lhe fora proposto. Rebelam-se com seu criador e disparam numa independência mediúnica. É como o filho idealizado que teima em decepcionar as expectativas paternas. Aquele que foi milimetricamente gerado para ser médico, torna-se poeta. Ou ainda (desgosto supremo!), o que foi planejado para ser esse último, teima na exatidão e frieza matemática.

            Independente do seu destino, tanto a primogênita quanto suas irmãs devem ser aninhadas, cuidadas, alimentadas. Banhos e mimos devem ser aplicados metodicamente para não sofrerem assaduras piegas. Aos poucos ganham forma e atingem a maturidade inevitável. Muitas morrem jovens, com todas as pautas pela frente, enquanto outras são eternas, nunca criam rugas e rejuvenescem a cada leitura. Não importa sobre o que dissertam, permanecem belas pelo simples fato de representarem magistralmente o que parece ser inexprimível no âmbito físico, aquilo que só é pleno quando ainda não alcançou a atmosfera, o que só pode ser definido por meio de sensações. A simples tentativa de materialização acaba por desfigurá-lo. O grau de desfiguração depende exclusivamente daquele que as põe no mundo.

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

O Reinado de Nina





O Reinado de Nina
(Alexandre Braoios)




Nina acordou de sobressalto, sem motivo aparente. Nenhum ruído se ouviu, apenas acordou com a respiração ofegante e transpirando. Revirou-se na cama uma, duas, três vezes. E nada. Arrepiava-se intermitentemente. Paralisada, não pôde se levantar para acender a luz e a voz não saiu quando tentou chamar por alguém que pudesse lhe acudir. Buscou com os olhos, pelas paredes e pelo teto, por sua princesa preferida. O quarto era decorado com inúmeras borboletas, estrelas, fadas e princesas que brilhavam há anos e ajudavam a acalmá-la no escuro.            
            Cobriu-se totalmente com o lençolzinho rosa, apenas o nariz e olhos para fora, e nele era possível ver o embrião da primeira espinha. Alguns minutos depois Nina abriu uma pequena fresta no seu escudo de algodão e viu, uma a uma, suas fadas e borboletas se apagando lentamente, como que agonizando. Imediatamente colocou a mão no ventre e gemeu de dor. Contorceu-se como se quisesse aliviar.
            O suor ficou mais abundante. Com os olhos espremidos e os dentes cravados no lábio inferior tentava alcançar o abajur. Também não conseguiu. Estava sozinha, paralisada de dor. Deve ter pensado que iria morrer, como suas fadas. Mas a noite se arrastou, e Nina continuava viva. Com dor, mas viva.
Próximo ao amanhecer, o sono a venceu.
            A luz natural iluminou o quarto e ela continuava encolhida, mas adormecida. Como estava atrasada, sua mãe entrou para chamá-la. Suavemente, como de costume, a mão maternal tirou o cabelo de seu rosto e um suave beijo acordou Nina. A pequena, agarrou-se ao pescoço da mãe:
      Pensei que tinha morrido.
      Por que minha princesa?
      Minha barriga dói muito, mãe.
O abraço se tornou mais terno.
 – Vá tomar um banho e depois vamos procurar um remédio pra sua dor – disse, ajudando a menina a se levantar. Mas deparou-se com o lençol manchado, abriu um sorriso: - Acho que está na hora da minha princesa virar rainha.