INDISSOCIÁVEL
(por Alexandre Braoios)
Vemos diariamente em nossos
noticiosos histórias dos incontáveis massacres que ocorrem endemicamente no
nosso país. Nossa reação? Quando muito restringe-se a um nem tão consternado
assim: “Meu Deus!”. Em seguida o
Bonner dá seu charmoso Boa Noite e voltamos nossa intelectualidade para as
tramas rocambolescas da novela das 21 hs.
Apenas um esboço de cidadania e
arrojo semipolítico se mostrou na campanha presidencial. E o esboço não foi de
nenhum Niemeyer, mas de alguém que, como eu, só consegue desenhar a mesma
árvore desde os tempos de escola. Mas é um começo, temos que ser otimistas.
Afinal, ninguém aprende a se politizar de um dia para o outro.
Dilma e o PT ganharam mais uma
eleição, a mais sofrível que presenciei. Sofrível em todos os sentidos, principalmente
o que se mostrou durante a campanha por parte de todos os candidatos que se
atacavam mutuamente – sim, a baixaria não foi monopólio de uma legenda. Mas os
ataques que vimos foi incomparavelmente menor do que os que ocorriam nas redes
sociais entre militantes de cada candidato e a polarização do segundo turno
apenas acirrou a pendenga. Encerra-se o pleito e inicia-se a campanha do
“terceiro turno”, onde o nível de despautérios e informações nebulosas
continuam os mesmos. O candidato derrotado veste-se com os adereços do bom moço
salvador da pátria e continua sua campanha. A candidata vencedora se embanana
como fez nos debates e monta um ministério que mais parece a casa dos horrores,
além de tomar medidas no mínimo duvidosas, se considerarmos o suposto
esquerdismo de seu partido político. Mas não é sobre isso que pretendo
escrever, é apenas um preâmbulo.
Quando, em 07 de janeiro, a notícia
sobre o massacre parisiense começou a circular, aí sim nos vestimos de
indignação contra esse absurdo e desumano atentado. Alguns dos maiores
cartunistas franceses haviam sido assassinados por terroristas muçulmanos, além
de outros anônimos. Realmente terrível. A capital do charme e do glamour havia
sido alvejada sem piedade por desalmados cidadãos franceses de origem islâmica,
que desde sempre foram marginalizados e escondidos nos subúrbios mais sujos da
cidade luz, provavelmente para não “enfeiar” a cidade. Nos dias que se seguiram
novos desdobramentos com mais mortes e uma caçada sem precedentes aos
criminosos mobilizou toda a França, o FBI americano e o mundo parou para ver o
desenrolar da história, onde os (ainda) suspeitos acabaram mortos.
Meu nível de conhecimento sobre a
história francesa não é suficiente para uma longa explanação sobre o assunto,
bem como não conhecia a fundo a publicação que foi alvo do atentado. Ao
pesquisar o assunto percebi que os chargistas realmente eram mestres. Charges
do papa, charges de judeus, de políticos e economistas e, claro, de Maomé que,
de acordo com a fé islâmica não pode ser retratado em desenhos ou pinturas,
quem dirá satirizado.
Igualdade, Liberdade e Fraternidade é o tão proclamado
princípio herdado da revolução francesa e todos eles foram assassinados nesse
atentado, ou melhor, tem sido assassinados nos diários capítulos que culminaram
nesse massacre. O lema inspirador do cineasta polonês Krzysztof Kieślowski que dirigiu os imperdíveis filmes: A Igualdade é Branca, A Liberdade é Azul e A Fraternidade é Vermelha, mingua a cada dia no mundo dito globalizado
em que vivemos, e o monstro que o vem devorando mostra seus enormes dentes
afiados, dessa vez na pátria mãe dos preceitos revolucionários.
Onze de setembro em Nova Iorque, 12
de outubro em Bali, 07 de julho em Londres, 11 de março em Madrid, 07 de
janeiro em Paris. Cinco datas que serão permanentemente lembradas para que não
nos esqueçamos do que o fundamentalismo islâmico é capaz. Mas deveríamos mudar
o foco das atenções e deixarmos essas datas para repensarmos o mundo que
estamos construindo. Ainda há tempo.
A França é o país europeu com maior
população muçulmana, grande parte são descendentes de imigrantes de um país que foi
colonizado e saqueado pelos franceses, a Argélia. A esmagadora maioria é
discriminada, tem subempregos, moram em condições deploráveis e a todo momento
são lembrados de sua possível doença, o fundamentalismo islâmico. Os muçulmanos seriam
fundamentalistas e extremistas por definição. O adjetivo está se tornando
indissociável e não demorará para assim constar no Wikipédia.
Mas existem outras datas que podemos
usar para reflexão, por exemplo, 22 de julho de 2011 na Noruega, 76 mortos.
Responda rápido: quem foi o autor? Se você disse algumas dessas respostas: um
fundamentalista islâmico; um louco qualquer; um cara desmiolado ou alguma coisa
semelhante, sinto dizer, você está se contaminando. O autor desse crime
horroroso foi Anders Behring Breivik, um norueguês fundamentalista cristão (!) de extrema
direita.
Mais
uma vez o mundo se consternou, e eu também. Mas a consternação geral, se é que
pode ser medida por algum consternociômetro, não foi a mesma quando milhares de
civis foram mortos nas ofensivas israelenses em Gaza, ou nos outros tantos
milhares mortos na invasão americana ao Iraque sob pretexto de encontrar e
destruir armas de destruição em massa. Destruição em massa foi o resultado da
ofensiva ocidental. Para quem não se lembra, nenhum traque foi encontrado em
meses de ação assassina, e ficou por isso mesmo. Mas são um bando de árabes,
quem se importa!? O mundo seria melhor se não existissem esses
fundamentalistas! E seria ainda melhor se pudéssemos exterminá-los sob qualquer
pretexto, tomar posse dessas terras que foram o berço da civilização humana e
como prêmio ainda poderíamos explorar as imensas reservas de petróleo que elas
guardam. Qual o interesse por traz dessas ofensivas? O bom-mocismo cristão?
Por
que tanto empenho não foi usado para por fim na genocídio que devastou Ruanda,
onde mais de 500.000 foram mortos a golpes de facão e enxadas? E segundo alguns
estudiosos, o massacre foi financiado pelo Banco Mundial e FMI. Ruanda é um
país paupérrimo e não teria dinheiro para orquestrar tamanha matança. Por que a
guerra na Bósnia, nos anos 1990, não foi prontamente interrompida pelas forças
ocidentais? Estima-se em mais de 200.000 mortos, além de centenas de mulheres
estupradas e outras atrocidades. O que falta ao subsolo desses países que não
foi capaz de sensibilizar as grandes forças militares mundiais?
Chegando
mais perto de nós: por que não nos consternamos com os massacres contra
indígenas que tem suas terras roubadas por madeireiras, garimpos, usinas
hidrelétricas? Por que não nos indignamos com a mesma veemência com os
massacres em favelas que são diários? Por que não publicamos nas redes sociais
frases como Je Suis Gay quando vemos
notícias das dezenas de mortes de gays e travestis, apenas pelo infame motivo
de serem quem são?
Qual
é o verdadeiro problema que teima em se revelar na forma desses massacres
estúpidos, como o de Paris? Talvez sociólogos estejam mais capacitados para
responder, mas que seja um sociólogo a serviço da sociologia e não de algum
partido, ou religião, ou outro grupo qualquer. Na ausência de um sociólogo de
corpo presente, resta-me ler sobre o assunto, buscar informações, mas do mesmo
modo, é importante que elas estejam isentas. Isso é importante porque o que
estamos ouvindo no pós-ataque é uma repetição do que ouvimos nos outros. A
notícia começa sempre com “Extremistas (ou fundamentalistas) islâmicos...”. Eis
o adjetivo indissociável.
Em
meio a toda a crise econômica e política que assola o mundo, os grupos de
extrema direita tem ganhado força e já estão sendo eleitos em muitos países,
provavelmente Marine Le Pen da Frente Nacional seja eleita nas próximas
eleições francesas. E eles já tem usado esse atentado para disseminar suas
ideias nacionalistas extremistas.
É
paradoxal o mundo lutar pela tão proclamada globalização, mas não querer pagar
o preço que ela impõe. Queremos comprar produtos mais baratos produzidos em
regime de semiescravidão em países pobres, mas não queremos ver seus olhos
puxados famintos, ou a pele não tão branca marcada pela chibata moderna.
Mas,
você pode imaginar que todo esse alvoroço está bem longe do seu iPhone e de sua
roupa de grife. Não, esse problema também visita os trópicos. Ou você já se
esqueceu do estado de quase-guerra que se instaurou porque um bispo resolveu
chutar e quebrar uma imagem da padroeira do Brasil em 1995? O tal bispo que foi
desrespeitoso com a religião de milhares de brasileiros foi ameaçado de morte.
Liberdade de expressão seletiva? Particularmente eu acho exagerado e de mau
gosto uma demonstração desse porte, assim como de uma charge mostrando Maomé
apenas de turbante e “de quatro”. Acho desnecessário e desrespeitoso, e olhe
que eu sou agnóstico! Mas é preciso ir a fundo nesse problema e não trata-lo
apenas como um caso de extremismoislâmico (já deve ser possível ver a junção
das palavras nos novos dicionários).
E
porque citei as eleições brasileiras de 2014? Para comprovar que a onda
extremista está nos abraçando, é só lembrar das manifestações pedindo a volta
da ditadura e a separação do território brasileiro para acomodar, no lado
norte, os prováveis miseráveis que votaram em Dilma e no lado centro-sul, os prováveis
mais ricos e instruídos que votaram no Aécio. Pense nisso. Dissocie-se.